Recentemente foram disseminados na televisão e mídias sociais os resultados de um artigo científico intitulado “Dietary emulsifiers impact the mouse gut microbiota promoting colitis and metabolic syndrome – a critical review”, publicado na revista NATURE, 519(5), de março de 2015, cuja tradução livre é “Emulsificantes alimentares impactam a microbiota intestinal de camundongos, promovendo colite e síndrome metabólica – uma revisão crítica”.
Obviamente este estudo envolve uma série de conceitos complexos ao indivíduo que não circula no meio científico. Um canal de televisão pode veicular essas informações de forma mais simples e resumida, porém, se não levar em consideração outros pontos de vista, podem gerar insegurança e mais desinformação. Conforme será explicado nesse texto, há muitas questões no artigo, base desta polêmica, que nos levam a duvidar de seus resultados, ou pelo menos considera-lo incompleto.
Inicialmente, não há dúvidas de que os autores são de Universidades respeitáveis, nem de que a revista é muito conceituada. O artigo é muito interessante, e foca um tema de grande repercussão, envolvendo a alimentação humana.
Resumindo o trabalho, o mesmo levanta a hipótese de que emulsificantes para fins alimentícios, CARBOXIMETILCELULOSE (CMC) e POLISORBATO-80 (Twin-80) são moléculas semelhantes a detergentes, e onipresentes em alimentos processados, responsáveis pelo aumento da translocação bacteriana através do epitélio in vitro, levando a um aumento de doenças inflamatórias intestinais. Ou de forma mais direta, emulsificantes utilizados pela indústria de alimentos causam doenças inflamatórias intestinais.
Inicialmente, devemos entender o que são emulsificantes para fins alimentícios e porque esses ingredientes não devem ser confundidos com detergentes. A princípio, emulsificantes e detergentes são moléculas tenso ativas, ou seja, possuem uma parte da molécula com característica apolar, que se liga às moléculas apolares (como óleos e gorduras) insolúveis em água; e uma parte da molécula com característica polar, que se liga às moléculas polares como a água. Um dos emulsificantes mais tradicionais pertence à classe do fósfolipídeos, popularmente denominados LECITINAS, que ocorrem naturalmente em produtos como soja e gema dos ovos. Esse ingrediente tem sido amplamente utilizado tanto para fins culinários como pela indústria de alimentos para fabricação, por exemplo, de maionese, onde a lecitina da gema do ovo emulsifica o azeite com a fase aquosa do vinagre /ou suco de limão. Outra aplicação comum é a adição de lecitina de soja ao leite em pó integral, o que facilita sua dissolução em água, mesmo a frio.
Por outro lado, detergentes são associados à emulsificação de gordura (triglicerídeos) com água, com o objetivo de remover esta sujeira insolúvel em água durante a LIMPEZA de utensílios e/ou equipamentos. Suas moléculas são de composição completamente diferente dos emulsificantes usados em alimentos. São DODECILBENZENOSULFONATO de SÓDIO presentes nos detergentes de cozinha, HIDRÓXIDO de SÓDIO para limpeza de equipamentos industriais, CARBONATO de SÓDIO (usados em detergentes para lava-louças), etc. que possuem a propriedade de facilmente emulsificar as gorduras com água.Esses detergentes são produzidos baseados no balanço hidrofílico/lipofílico, para que sua ação seja maximizada. Esta é a razão da facilidade de lavagem de louças mesmo com água fria. Todos esses detergentes não são permitidos como ingredientes pela indústria de alimentos.
Ao relacionar emulsificantes alimentícios com detergentes, os autores causam confusão e estigmatizam a Ciência de Alimentos. Além disso, a afirmação de que o uso de emulsificantes pela indústria de alimentos ocorre de forma onipresente não é verdade. A necessidade advém da obtenção de uma emulsão alimentícia e, muitas vezes, isso é obtido de forma natural, com ingredientes naturais de diversos alimentos como SOJA e GEMA de OVO.
O estudo aponta que emulsificantes poderiam aumentar a translocação de bactérias através do epitélio in vitroe, portanto, promover o aumento de doenças inflamatórias intestinais, porém, o estudo foi realizado in vitro, ou seja, é resultado de observações em equipamentos de laboratório, não no organismo vivo. Antes de promover uma discussão tão acirrada e muitas vezes disseminar o pânico sobre alimentos industrializados, essas hipóteses deveriam ser elucidadas.
Indicar no artigo que os dois emulsificantes tradicionais utilizados pela indústria alimentícia foram ministrados em concentrações relativamente baixas, é muito genérico, pois não há referências no artigo para afirmar o que é baixo e o que é alta concentração. No leite em pó, por exemplo, a dosagem de lecitina de soja para o leite instantâneo é da ordem de 0,2% em peso. Conforme indicações de rótulo, num copo de 180 mL devem ser adicionadas 32 g de leite em pó. Se você consome 2 copos de leite por dia, estará ingerindo aproximadamente 64 g de leite em pó e, portanto, 0,256 g de lecitina de soja. Para uma pessoa de 60 kg, isso significa 0,00043% de sua massa corporal. Como pode ser visto, mesmo que você consuma diversos produtos contendo lecitina de soja e em grandes quantidades, vai ser difícil alcançar a dosagem utilizada pelos autores neste trabalho e é fácil explicar o porquê.
No presente trabalho, a CMC e o Twin-80 foram administrados, num dos planejamentos, numa dosagem proporcional a 1% em peso na água dos camundongos. Considerando que um camundongo bebe aproximadamente 5 mL por dia e sua massa é cerca de 15 g, a dosagem diária dos autores, nesse caso, foi de 0,33% da massa corporal dos camundongos, o que seria equivalente a um ser humano de 60 kg consumir quase 200 g de CMC ou Twin 80 todo dia. Se esses emulsificantes estivessem num produto numa dosagem de 1% (o que é tecnologicamente muito, em especial para a CMC), seriam necessários 20 kg de alimentos industrializados para suprir tal demanda, ou 20 litros de água na mesma dosagem. Mesmo que os ratos tivessem o dobro do peso e consumissem a metade da água, ou seja, dividindo por 4, os resultados ainda seriam incompatíveis.
Mas vamos aos princípios. No artigo, em relação aos dois emulsificantes apontados, CMC e Twin-80, vale esclarecer alguns pontos. Primeiro, a CMC não é um detergente e nem um emulsificante. É apenas um espessante que ajuda a manter partes do alimento unidas pelas suas propriedades viscosas. A CMC é um polímero sódico derivado da celulose com substituição, usado em diversos ramos industriais por suas propriedades de alta solubilidade em água. Sua principal função é aumentar a viscosidade de líquidos em geral, colírios, etc. molhos, sopas, bebidas. Também é usada, dependendo da concentração para formação de géis e veiculo em comprimidos.
Em relação ao Twin-80, o mesmo é realmente um emulsificante, pois ajuda a unir ingredientes como óleo e água. É feito a partir do polyethoxylated sorbitan (um composto químico derivado da desidratação de açúcar de cana, óxido de etileno e ácido oleico, um ácido graxo encontrado em gorduras animais e vegetais). É um ingrediente comum em produtos como molhos, sorvetes, cremes. É um emulsificante não iônico seguro. Ele pode ser usado com um co-emulsificante, como a lecitina, para cobrir uma ampla gama de sistemas de emulsão de óleo em água e água em óleo. Individualmente, é um excelente solubilizador de óleos essenciais, umectante, modificador de viscosidade, estabilizador e dispersante.
O artigo também afirma que o amplo uso de agentes emulsificantes poderia contribuir para um aumento da incidência de síndromes de obesidade metabólica e outros processos de inflamações crônicas. Essa afirmação causa confusão, pois não há um indicativo do que seja “amplo” nesse contexto, e dá a entender que a grande maioria dos produtos industrializados utiliza emulsificantes, o que não é verdade.
Na sessão Materiais e Métodos os autores indicam que os emulsificantes CMC ou Twin 80 foram administrados a ratos por 12 semanas, mas não reportam o volume consumido para saber qual a quantidade real ingerida dos produtos (as contas anteriores foram feitas por extrapolação de dados em tabela de alimentação de ratos e camundongos). A ingestão de emulsificantes dissolvidos na água implica que o produto tem contato DIRETO com as paredes do trato intestinal. Para uma pesquisa correta, os autores deveriam ter feito a comparação com os emulsificantes no produto na forma emulsificada, que é a forma de aplicação, quando usados.
Ainda, é fundamental entender o processo digestivo sobre os emulsificantes: eles são degradados em moléculas menores ou passam direto para o intestino? Isto é FUNDAMENTAL, porque na água, caso a molécula não seja digerida, esta estará em contato direto com trato intestinal e irá possivelmente emulsificar os lipídios lá presentes. Quando o emulsificante é consumido em sua forma emulsificada é necessário entender no processo digestivo o que ocorre com a emulsão.
Outro ponto importante é que neste estudo foram utilizadas duas linhagens alteradas de ratos, propensas a desenvolver mudanças na composição e inflamação da microbiota. O uso de animais propensos à inflamação pode dar resultados falso-positivos para outros componentes da dieta. Outra questão é o fato de os experimentos terem sido efetuados com camundongos jovens (com 4 semanas de idade no início do experimento), com base na noção de que a microbiota é mais propensa a distúrbios desde tenra idade, outro ponto que pode levar a falso-positivos. Além disso, na metodologia os autores utilizaram um algoritmo UniFrac do qual não apresentam referencias.
Ao nosso entendimento o estudo é interessante, mas a sua dissociação dos conceitos relacionados à Ciência e Tecnologia de Alimentos leva a conclusões precipitadas, dissemina pânico e distorce a realidade.
Nem todas as revistas científicas, mesmo as mais notáveis, produzem sempre artigos que abordam todos os pontos de vista necessários a uma correta interpretação dos resultados.
Todas as questões apontadas no artigo são importantes e não há dúvidas de que a indústria de alimentos pode modificar seus protocolos, aprovar novos produtos e proibir alguns ingredientes em uso, desde que estudos técnicos multidisciplinares, envolvendo profissionais das áreas de medicina, bioquímica, microbiologia, engenharia de alimentos, etc. cheguem a estas conclusões e apontem sua real necessidade.
Autores:
Flávio Luís Schmidt, PhD
Alfredo de Almeida Vitali, PhD
Marcelo Cristianini, PhD
Todos Engenheiros de Alimentos.